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[ENSAIO] Cem Dias entre quatro paredes

Por Edleide Freitas Pires*

Vinte e seis de junho de 2020. Cem dias concentrados na missão de se proteger do poderoso vírus causador da Pandemia da Covid-19. Uma situação sem precedentes para a geração 2019-2020 que gerou profundas mudanças nas vidas, hábitos e comportamentos dos brasileiros.

Fazendo analogia ao famoso livro de Amyr Klink, “Cem dias entre céu e mar”, lançado em set/1985 pela JO Editora, percebo semelhanças e diferenças. O aventureiro, diante de uma situação por ele estabelecida, relatou a grande necessidade de adaptações quando isolado num barco a remo para travessia do Atlântico. O autor da obra destaca sua experiência com alimentação, com problemas ambientais e, naturalmente, com a autoconfiança em cumprir o seu propósito. Igualmente, numa situação não intencional, percebemos as necessidades de adaptações a tudo que antes era hábito, cultura e estilo de vida. Como para o navegador, a disciplina passou a ser o quesito de maior importância para a sobrevivência e para o controle da virose.

André Trigueiro, em seu livro “ A força do um”, publicado em 2020, pouco antes do reconhecimento da pandemia do novo coronavirus, uma espécie de premonição,ressalta e nos desperta para o entendimento de que a solução de tudo está no “UM”. Quando cada indivíduo se reconhece capaz de resolver seus problemas pode entender as suas necessidades e, dentre elas, a de proteção contra uma doença infectocontagiosa. Protegido é possível ajudar o outro. No caso da avassaladora virose da SARS-CoV quando cada um se protege, protege também o outro.

Com o confinamento, cada um passou a ser capaz de descobrir a força intrínseca. Para a prevenção e controle da pandemia, muitos ficaram fisicamente isolados e muitas experiências e adaptações também viveram. Para uns, as recomendações dos órgãos de saúde foram mais traumatizantes. Como aceitar ficar isolado, com os amigos e parentes tão perto? Tem-se a impressão de que as crianças entenderam as recomendações melhor que os adultos, embora reclamassem a ausência dos amigos, dos colegas e da escola. Com vantagens, desfrutaram de maior convivência com os pais que, com o tempo quase todo dedicado às atividades profissionais, rotineiramente, delegavam os cuidados dos filhos aos cuidadores e professores.

Pensadores já externaram que “é na crise que nascem as invenções...” (Albert Einstein). Foi também nas oportunidades que talentos adormecidos afloraram nos tempos confinados, de modo que pessoas se descobriram capazes de desenvolver atividades antes delegadas a especialistas e encontraram meios e métodos para realizar suas atividades onde antes só entendiam ser possível em escritórios com boas instalações. A tranquilidade do isolamento ajudou nas adaptações, e surpreendentemente, muitos
provaram seu poder para vencer as adversidades e até conseguiram tirar proveito de novas demandas.

A oportunidade de ficar isolado só funcionou para aqueles com condições, considerando as grandes diferenças observadas nas quatro paredes de cada um. A impossibilidade de praticar o recomendado isolamento, evidentemente, contribuiu para a propagação e persistência do vírus, que não escolhe grupo social.

Em ocasião semelhante, na gripe denominada “espanhola” que aconteceu em 1918, as dificuldades, certamente, foram maiores. O número de cientistas estudando as causas e comportamentos das viroses era bem menor e o desenvolvimento tecnológico não era suficiente para disponibilizar as ferramentas necessárias às conclusões das hipóteses por eles construídas. Por outro lado, com população menos numerosa e com evidentes limitações dos meios de comunicação e transporte, os brasileiros moradores de pequenas cidades, longe dos grandes centros, não perceberam a real gravidade da gripe. Em razão do desconhecimento, não tiveram os mais velhos, condições de relatar os fatos ocorridos aos seus descendentes ou de transmitir as experiências vividas.

Na COVID-19, considerada pandemia em 2020, contamos com a tecnologia em favor dos tempos. As facilidades na comunicação ajudaram na captura de dados estatísticos, nos diagnósticos e na divulgação de protocolos de prevenção. Entretanto, a disponibilidade de meios para mobilidade das pessoas e de objetos também contribuiu para a transformação do que poderia ser uma endemia, em uma pandemia. Constatou-se que o vírus se espalhou no mundo por meio de pessoas e também de mercadorias nas avançadas e facilitadas importações.

Os estudiosos das doenças psíquicas perceberam que: os pacientes submetidos ao rigoroso isolamento, sofreram maiores danos que a população em geral, nas mesmas condições. Para muitos, a perda de amigos e parentes por mortes inesperadas foi uma experiência traumática, sobretudo pela impossibilidade de acompanhar e conviver com os entes queridos enquanto acometidos pela doença.

Tais observações e introspecções impulsionaram a necessidade de registrar os fatos, na tentativa de contribuir para a história e, consequentemente, para a valorização do sofrimento vivido pelo povo brasileiro em 2020.

*Edleide Freitas Pires
Pernambucana de Afogados da Ingazeira, nutricionista, mestra e doutora em nutrição,
professora da UFRPE e da UFRPE.